Hoje, em especial dia do meu aniversário, vou compartilhar um texto sobre gratidão, porque não há nada que me aborrece mais que a INgratidão e porque sou grata a Deus...porque sou grata a tudo e a todos!!!
Do Livro: Pequeno Tratado das Grandes Virtudes - André Comte-Sponville
A gratidão
A gratidão é a mais agradável das virtudes; não é, no entanto, a mais fácil. Por que seria? Há prazeres difíceis ou raros, que nem por isso são menos agradáveis. Talvez sejam até mais. No caso da gratidão, todavia, a satisfação surpreende menos que a dificuldade. Quem não preferereceber um presente a um tapa? Agradecer a perdoar? A gratidão é um segundo prazer, que prolonga um primeiro, como um eco de alegria à alegria sentida, como uma felicidade a maispara um mais de felicidade. O que há de mais simples? Prazer de receber, alegria de seralegre: gratidão. O fato de ela ser uma virtude, porém, basta para mostrar que ela não é óbvia,que podemos carecer de gratidão e que, por conseguinte, há mérito – apesar do prazer ou,talvez, por causa dele – em senti-la. Mas por quê? A gratidão é um mistério, não pelo prazerque temos com ela, mas pelo obstáculo que com ela vencemos. É a mais agradável dasvirtudes, e o mais virtuoso dos prazeres.Objetar-me-ão a generosidade: prazer de oferecer, diz-se… O fato de ser um argumentopublicitário deve, porém, nos deixar vigilantes. Se fosse agradável dar, acaso teríamosnecessidade dos publicitários para pensar nisso? Se a generosidade fosse um prazer, ou antes,se fosse apenas um prazer, ou sobretudo um prazer, será que ela nos faltaria a esse ponto? Nãose dá sem perda, por isso a generosidade se opõe ao egoísmo, e o supera. Mas e receber? Agratidão não nos tira nada, ela é dom em troca, mas sem perda e quase sem objeto. A gratidãonada tem a dar, além do prazer de ter recebido. Que virtude mais leve, mais luminosa,diríamos mais mozartiana, e não apenas porque Mozart nos inspira essa virtude, mas porque acanta, porque a encarna, porque há nele essa alegria, esse reconhecimento desvairado porsabe-se lá o que, por tudo, essa generosidade da gratidão, sim, que virtude mais feliz e maishumilde, que graça mais fácil e mais necessária do que ser grato, justamente, com um sorrisoou um passo de dança, com um canto ou uma felicidade? Generosidade da gratidão… Estaúltima expressão, que devo a Mozart, esclarece-me: se a gratidão nos falta com tantafreqüência, não será, de novo, mais por incapacidade de dar do que de receber, mais poregoísmo do que por insensibilidade? Agradecer é dar; ser grato é dividir. Esse prazer quedevo a você não é apenas para mim. Essa alegria é a nossa. Essa felicidade é a nossa. Oegoísta pode regozijar-se em receber. Mas seu regozijo é seu bem, que ele guarda só para si.Ou, se o mostra, é mais para fazer invejosos do que felizes: ele exibe seu prazer, mas é oprazer dele. Já esqueceu que outros têm algo a ver com isso. Que importância têm os outros?Por isso o egoísta é ingrato: não porque não goste de receber, mas porque não gosta dereconhecer o que deve a outrem, e a gratidão é esse reconhecimento, porque não gosta deretribuir, e a gratidão, de fato, retribui com o agradecimento, porque não gosta de partilhar,porque não gosta de dar. O que a gratidão dá? Ela dá a si mesma: como um eco de alegria,dizia eu, pelo que ela é amor, pelo que ela é partilha, pelo que ela é dom. É prazer somado aoprazer, felicidade somada à felicidade, gratidão somada à generosidade… O egoísta é incapazdisso, pois só conhece suas próprias satisfações, sua própria felicidade, pelas quais zela comoum avaro por seu cofre. A ingratidão não é incapacidade de receber, mas incapacidade deretribuir – sob a forma de alegria, sob a forma de amor – um pouco da alegria recebida ousentida. É por isso que a ingratidão é tão freqüente. Nós absorvemos a alegria como outrosabsorvem a luz: buraco negro do egoísmo.A gratidão é dom, a gratidão é partilha, a gratidão é amor: é uma alegria que acompanha aidéia de sua causa, como diria Spinoza, quando essa causa é a generosidade do outro, ou suacoragem, ou seu amor. Alegria retribuída: amor retribuído. No sentido próprio ela só pode,portanto, referir-se a seres vivos. No entanto, podemos nos indagar se toda alegria recebida,qualquer que seja a sua causa, não pode ser objeto dessa alegria retribuída que é a gratidão.Como não agradecer ao sol por existir? À vida, às flores, aos passarinhos? Nenhuma alegriaseria possível para mim sem o resto do universo (pois, sem o resto do universo, eu nãoexistiria). É nisso que toda alegria, mesmo puramente interior ou reflexiva (a acquiescentia inse ipso de Spinoza), tem uma causa externa, que é o universo, Deus ou a natureza: que é tudo.Ninguém é causa de si, nem portanto (em última instância) de sua alegria. Toda série decausas, e há uma infinidade delas, é infinita: tudo se amarra, e nos amarra, e nos atravessa.Todo amor, levado a seu limite, deveria pois tudo amar: todo amor deveria ser amor a tudo(quanto mais amamos as coisas singulares, poderia dizer Spinoza, mais amamos a Deus), oque produziria como que uma gratidão universal, não indiferenciada, é claro (comopoderíamos ter a mesma gratidão pelos passarinhos e pelas cobras, por Mozart e por Hitler?),mas global pelo menos no fato de que seria gratidão pelo todo, de que não excluiria nada, deque não recusaria nada, mesmo o pior (gratidão trágica, logo, no sentido de Nietzsche), pois oreal é para pegar ou largar, pois o todo do real é a única realidade.Essa gratidão é gratuita, por não se poder exigir dela, ou para ela, nenhum pagamento. Oreconhecimento talvez seja um dever, em todo caso uma virtude, mas, observa Rousseau, nãopoderia ser um direito exigi-lo ou exigir o que quer que seja em seu nome. Não confundamosgratidão com retribuição de cortesias. Como quer que seja, porém, o amor quer bem aoamado, quase necessariamente, pelo menos se é amor ao outro e não a si, portanto, se é antesbenevolência que concupiscência. Voltaremos a isso em nosso último capítulo. Digamosapenas que a gratidão é levada a agir, por sua vez, em favor de quem a suscita, não decertopara trocar um obséquio por outro (não seria mais gratidão, e sim troca), mas porque o amorquer dar alegria a quem o alegra, com o que a gratidão nutre a generosidade, quase sempre,que nutre a gratidão. Daí um “amor recíproco”, como diz Spinoza, e um “zelo de amor”, quecaracterizam também a gratidão: “O reconhecimento ou gratidão é o desejo ou o zelo de amorpelo qual nos esforçamos em fazer o bem àquele que o fez a nós, em virtude de umsentimento semelhante de amor por nós.” É aí que passamos da gratidão simplesmenteafetiva, como dirá Kant, à gratidão ativa: da alegria retribuída à ação retribuída. Quanto amim, e apesar de Spinoza, eu veria nisso menos uma definição (pois, por exemplo, podemoster gratidão por um morto, ao qual não poderíamos fazer o bem) do que uma conseqüência,mas pouco importa. O certo é que a gratidão se distingue da ingratidão precisamente por saberver no outro (e não, como o amor-próprio, unicamente em si mesmo) a causa de sua alegria –pelo que a ingratidão é ruim, pelo que a gratidão é boa, e torna bom.A força do amor-próprio explica assim a raridade ou a dificuldade (“tudo o que é belo é tãodifícil quanto raro…”) da gratidão: cada um, do amor recebido, prefere tirar glória, que éamor a si, em vez de reconhecimento, que é amor ao outro. “O orgulho não quer dever”,escreve La Rochefoucauld, “e o amor-próprio não quer pagar”. Como não seria ele ingrato, sesó sabe amar a si, admirar a si, celebrar a si? Há humildade na gratidão, e a humildade édifícil. Uma tristeza? É o que diz Spinoza, e voltaremos a isso no próximo capítulo. O que agratidão ensina, porém, é que existe também uma humildade alegre, ou uma alegria humilde,porque ela sabe que não é sua própria causa, nem seu próprio princípio – e se regozija aindamais (que prazer dizer obrigado!) com isso -, porque ela é amor, e não amor a si antes de tudoou sobretudo, porque se sabe devedora, se quisermos, ou antes (pois nada tem a reembolsar),porque se sabe plenamente satisfeita, além de qualquer expectativa e anteriormente a qualquerexpectativa, pela própria existência do que a suscita, e que pode ser Deus, quando se crê nele,que pode ser o mundo, que pode ser um amigo, um desconhecido, que pode ser qualquer um,porque ela se sabe objeto de uma graça – aí está! – que é a existência, talvez, ou a vida, outudo, e que ela agradece, sem saber a quem nem como, porque é bom agradecer, regozijar-secom seu regozijo e com seu amor, cujas causas sempre nos excedem, nos contêm, nos fazemviver, nos arrebatam. Humildade de Bach, humildade de Mozart, tão diferentes uma da outra(o primeiro agradece, dá graças, com gênio sem igual, o segundo, poder-se-ia dizer, é aprópria graça…), mas ambas comoventes de gratidão feliz, de simplicidade verdadeira, depotência quase sobre-humana, com a serenidade, mesmo na angústia ou no sofrimento, dequem se sabe efeito, não princípio, e contido naquilo que canta, e que o faz ser, e que oarrebata… Clara Haskil, Dinu Lipatti ou Glenn Gould souberam exprimir isso, parece-me,pelo menos em seus melhores momentos, e essa alegria que temos em ouvi-los diz o essencialda gratidão, que é a própria alegria enquanto recebida, enquanto imerecida (sim, mesmo paraos melhores!), enquanto graça, e sempre integrada (e parte integrante, porém) numa graçamais elevada, que é existir, o que estou dizendo, que é a própria existência, que é o próprioser, e o princípio de toda existência, e o princípio de todo ser, e de toda alegria, e de todoamor… Sim, isso que podemos ler na Ética de Spinoza também ouvimos na música, e nas deBach e de Mozart, parece-me, melhor do que em qualquer outra (em Haydn ouvem-se mais apolidez e a generosidade, em Beethoven a coragem, em Schubert a doçura, em Brahms afidelidade…), e é o suficiente para dizer a que altura a gratidão se situa: virtude de ápice, epara os gigantes muito mais que para os anões. No entanto, isso não nos poderia dispensardela: agradeçamos à graça, antes de tudo aos que a revelam celebrando-a!Nenhum homem é causa de si. O espírito, dizia Claude Bruaire, está “em dívida de seu ser”.Mas que nada, por ninguém pediu para estar (o empréstimo, não o dom, é que faz a dívida),pois ninguém, de resto, poderia saldar essa dívida. A vida não é dívida: a dívida é graça, o seré graça, e esta é a mais elevada lição de gratidão.A gratidão se regozija com o que aconteceu, ou com o que é; ela é, portanto, o inverso doarrependimento ou da nostalgia (que sofrem com um passado que foi, ou que não é mais),como também da esperança ou da angústia, que desejam ou temem (desejam e temem!) umfuturo que ainda não é, que talvez nunca seja, mas que as tortura com sua ausência… Gratidãoou inquietude. A alegria do que é ou foi, contra a angústia do que poderia vir a ser. “A vida doinsensato”, dizia Epicuro, “é ingrata e inquieta: ela se volta toda para o futuro.” Por isso elesvivem em vão, incapazes de se saciarem, de se satisfazerem, de serem felizes: eles não vivem,dispõem-se a viver, como dizia Sêneca, esperam viver, como dizia Pascal, depois lamentam oque viveram ou, mais freqüentemente, o que não viveram… O passado como o futuro lhesfalta. Já o sábio regozija-se com viver, claro, mas também com ter vivido. A gratidão (charis)é essa alegria da memória, esse amor do passado – não o sofrimento do que não é mais, nem opesar pelo que não foi, mas a lembrança alegre do que foi. É o tempo reencontrado, sequisermos (“a gratidão do que foi”, diz Epicuro). Compreendemos que esse tempo torna aidéia da morte indiferente, como dirá Proust, pois aquilo que vivemos, a própria morte, quenos levará, não poderia tomar de nós: são bens imortais, diz Epicuro, não porque nãomorremos, mas porque a morte não poderia anular o que vivemos, o que fugidia edefinitivamente vivemos. A morte só nos privará do futuro, que não é. A gratidão liberta-nosdele, pelo saber alegre do que foi. O reconhecimento é um conhecimento (ao passo que aesperança nada mais é que uma imaginação); é por aí que ela alcança a verdade, que é eterna,e a habita. Gratidão: desfrutar eternidade.Isso não nos restituirá o passado, objetar-se-á a Epicuro, nem o que perdemos… Sem dúvida,mas quem pode fazê-lo? A gratidão não anula o luto, consuma-o: “É necessário curar osinfortúnios com a lembrança reconhecida do que perdemos, e pelo saber de que não é possíveltornar não-consumado o que aconteceu.” Pode haver formulação mais bela do trabalho doluto? Trata-se de aceitar o que é, portanto, também o que não é mais, e de amá-lo como tal,em sua verdade, em sua eternidade: trata-se de passar da dor atroz da perda à doçura dalembrança, do luto a consumar ao luto consumado (“a lembrança reconhecida do queperdemos”), da amputação à aceitação, do sofrimento à alegria, do amor dilacerado ao amorapaziguado. “Doce é a lembrança do amigo desaparecido”, dizia Epicuro – a gratidão é essaprópria doçura, quando se torna alegre. No entanto, o sofrimento é mais forte primeiro: “Queterrível ele ter morrido!” Como poderíamos aceitar? Por isso o luto é necessário, por isso édifícil, por isso é doloroso. Mas a alegria retorna, apesar dos pesares: “Que bom ele tervivido!” Trabalho do luto: trabalho da gratidão.Não estou persuadido de que a gratidão seja um dever, como pensavam Kant e Rousseau.Aliás, não acredito muito nos deveres. Mas o fato de ela ser uma virtude, isto é, umaexcelência, é atestado pela evidente baixeza de quem é incapaz de gratidão, e atesta amediocridade de nós todos, que carecemos dela. Como o ódio sobrevive melhor que o amor!Como o rancor é mais forte que a gratidão! Pode ser até que esta às vezes se inverta naquela, atal ponto o amor-próprio é suscetível: a ingratidão para com o benfeitor, escreve Kant, “é umvício na verdade extremamente detestável ao juízo de todos, embora o homem tenha tão máreputação sob esse aspecto, que ninguém considera inverossímil que seja possível fazer uminimigo mediante benefícios notáveis”. Grandeza da gratidão: pequenez do homem.Sem contar que o próprio reconhecimento pode ser às vezes suspeito. La Rochefoucauld nãovia nele mais que interesse disfarçado, e Chamfort notava com razão que “há uma espécie dereconhecimento baixo”. É servilidade disfarçada, egoísmo disfarçado, esperança disfarçada.Só se agradece para se ter mais (diz-se “obrigado”, pensa-se “mais”!). Não é gratidão, élisonja, obsequiosidade, mentira. Não é virtude, é vício. Aliás, mesmo sincero, oreconhecimento não poderia nos dispensar de nenhuma outra virtude, nem justificar qualquerfalta que fosse. Virtude segunda, se não secundária, que cumpre manter em seu devido lugar:a justiça ou a boa-fé podem autorizar uma falta com a gratidão, mas não a gratidão uma faltacom a justiça ou a boa-fé. Ele me salvou a vida: devo, por isso, impor-me um falsotestemunho em seu favor e com isso condenar um inocente? Claro que não! Não esquecer nãoé ser ingrato, pelo que devemos a determinado indivíduo, o que devemos a todos os demais ea nós mesmos. Não é ingrato, escreve Spinoza, “aquele que os dons de uma cortesã nãotransformam em instrumento dócil de sua lubricidade, os de um ladrão num receptador deseus roubos, ou qualquer outra coisa semelhante. Pois esse, ao contrário, mostra que é dotadode constância de alma, que não se deixa corromper por nenhum presente, seja para sua própriaperda, seja para a perda comum.” Gratidão não é complacência. Gratidão não é corrupção.A gratidão é alegria, repitamos, a gratidão é amor. É por isso que ela se aproxima da caridade,que seria como “uma gratidão incoativa, uma gratidão sem causa, uma gratidão incondicional,assim como a gratidão é uma caridade segunda ou hipotética”. Alegria somada a alegria: amorsomado a amor. A gratidão é nisso o segredo da amizade, não pelo sentimento de uma dívida,pois nada se deve aos amigos, mas por superabundância de alegria comum, de alegriarecíproca, de alegria partilhada. “A amizade conduz sua dança ao redor do mundo”, diziaEpicuro, “convidando todos nós a despertar para dar graças.” Obrigado por existir, dizem umao outro, e ao mundo, e ao universo. Essa gratidão é de fato uma virtude, pois é a felicidadede amar, e a única.
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