terça-feira, 7 de junho de 2011

Contos que Conto

A Noite que Aparece Após o Meio Dia

O  cheiro do feijão e do toucinho, as badaladas do sino da igreja, as crianças sendo chamadas para dentro, o mormaço refletindo nos azulejos, as sombras acompanhando as pessoas :  quase  Meio Dia.
Sempre ao meio dia, mas nunca agendado, P aparecia na viela daquela rua de subúrbio. Uma , duas, três  vezes por semana no máximo, ele aparecia na casa de LJ.Entrava sem bater, as vezes assoviava e entrava. Não tinha dia certo, Só horário.
Meio Dia. As dez, LJ já estava com a casa limpa, as onze, o quarto arrumado e perfumado, as onze e quinze o almoço começando , para que tudo, os mínimos detalhes do mundo de LJ estivesse pronto e disponível ao meio dia. Se viesse, P encontraria tudo na mais perfeita ordem. Se não viesse ( e ele nunca avisava quando iria ou não) , paciência, tudo fora preparado para ele. E estaria perfeito ao meio dia.
Quando P aparecia, um gole rápido da branquinha com semente de maracujá sem açúcar. A segunda dose era levada para o quarto, onde  lençóis absurdamente brancos e alvos estavam arrumados na cama, onde, na parede, num quadro tinha um Cristo olhando  para o céu distante,  suplicando  alguma coisa para alguém.
 Ele tirava a roupa cuidadosamente, dobrava cada peça meticulosamente e ajeitava-as na grande cadeira espreguiçadeira do quarto ao lado da porta do banheiro e deitava-se só de cuecas . Nesse momento, LJ já estava  nua, na cama.
Não trocavam palavras. Um abraço, beijo,outro, mais outro. Um gole definitivo  na branquinha com semente de maracujá . E daí para frente, o sexo tomava conta da cama, do quarto, da casa.
Às vezes era feroz e voraz. Às vezes manso e alongado. Às vezes continha gestos desesperados. Às vezes nem gemiam. Mas sempre, ao meio dia, o sexo era inteiro e completo. Como se só de amor fosse feito. E assim, perfeito.
Depois, se vestiam, sentavam-se à mesa e almoçavam.
Ele saia entre duas e duas e meia, e deixava uma nota de R$100,00 e um jogo da Mega Sena pra quarta ou pro sábado. E quando vinha mais de uma vez por semana, para as duas datas de sorteio. Mas dizia sempre algo como: “ Boa Sorte,amor ”. Depois ia embora sem mais palavras.
P foi o primeiro namorado e homem de LJ. Não deu certo. LJ era muito jovem e o pai, muito enérgico, pegou-os um dia se beijando no portão daquela mesma casa há muitos anos atrás e acabou com o namoro. Houve alguma discussão, o pai de LJ ficou muito furioso e ameaçou P de todas as formas possíveis. Pra garantir, e provar ser homem de palavra, mandou um funcionário da estiva “dar um susto” em P. E, com demasiado requinte de crueldade, mandou que cortasse um pedaço da língua de P. Navalha na língua, escoriações, hematomas, dor e sangue. Muito sangue. Assim, “não beijarás  mais ninguém”....
P nunca mais apareceu por lá. LJ ainda o procurou, mandou recado, deixou bilhetes na transportadora onde P começara a trabalhar, mas P, repentinamente, mudou-se para o  interior de Minas Gerais e sumiu da vida de LJ.
Pouco tempo depois do acidente , morto de enfarte o pai de LJ, as desgraças se sucederam: mãe enlouquecida morreu asfixiada, irmão entrou no tráfico e saiu para a morte em confronto, irmã de LJ fugiu com um caminhoneiro e nunca mais foi vista, e LJ, morena linda e naturalmente sedutora, acabou na prostituição.
Anos depois, na casa de Alcina, o melhor puteiro do bairro, um vulto silencioso tira LJ do sofá de espera e a conduz para o quarto. Na penumbra, LJ não se atentou quem era  (e não importava) e só depois que deitou na cama, por uma réstia de luz da Lua que entrava pela janelinha do quarto do puteiro , reconheceu aquele cliente mudo. Sentou na cama, acendeu o abajur, respirou fundo, suspirou e chorou. P agora era um senhor com alguns grisalhos adornando um rosto marcado, precocemente envelhecido.
LJ falou muito, perguntou tudo, mas P mal conseguia balbuciar ou montar algumas frases audíveis. De tudo que foi possível entender, LJ soube que P havia  ganho na Mega Sena, um prêmio dividido em 12, mas ainda assim um bom dinheiro, e voltado de Minas.Procurou por LJ por meses, jamais acreditando em seu paradeiro.  Os quase 15 anos que se passaram, passaram rápidos naquela noite. E, com ela, passou o rancor, a mágoa, o ressentimento e a saudade. O sexo só veio ao final da madrugada e LJ dormiu seu melhor sono, nos braços de seu único namorado.
Depois disso, a surpresa para LJ : P comprara sua antiga casa e deu-a de presente a ela. Estava casado sim, há mais de 8 anos, tinha 3 filhos, montara um salão  de beleza para a mulher e não tinha a menor intenção de deixar essa sua vida para ficar com LJ. Mas não queria perdê-la e assim, um acordo silencioso foi selado. Além da casa e mobília, um emprego  de meio período em televendas de amigos de P foi arranjado para LJ. E a disponibilidade eterna de recebê-lo , sempre ao Meio Dia, quando ele assim quisesse ou pudesse.
Com ele quase mudo, ela aprendeu a compartilhar seu silêncio e a entender suas intenções. E nos dias possíveis, ao Meio Dia, a namorada virava mulher, virava puta, virava cozinheira, virava amante. No silêncio absoluto que se fazia após os 12 toques do sino da igreja próxima, no calor do sol inclemente, na paixão do mormaço, na fumaça do feijão, na alvura da cama sempre pronta e virgem, no cheiro da pinga com maracujá, vivia uma mulher apaixonada demais para não saber esperar por seu homem.
Quando ele se ia, ela acompanhava ele descer a ladeirinha rua abaixo, olhava para o céu, como o Cristo do quarto, e via uma grande Lua brilhando na noite escura ao invés do Sol em céu claro.
Sua noite estava começando quando ele ia embora, logo após o Meio Dia. Noite imensa e silenciosa como ele. Misteriosa como ele e seus bilhetes de Mega Sena.
E, ao dormir, ela rezava toda noite para que ele, o seu prêmio de vida, viesse amanhã.
 Ao Meio Dia. 

Quitéria di Genaro 

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